Desembargador Joás fala, em Patos, sobre função social do TJ-PB: igualdade, acesso ao Judiciário e justiça distributiva
Falando a professores, alunos, advogados, membros da Magistratura e do Ministério Público, além de outros operadores do Direito, o desembargador Joás de Brito Pereira Filho, integrante do Tribunal Pleno e da Câmara Criminal do TJ-PB, pronunciou a aula inaugural do primeiro semestre do ano letivo de 2008 nas Faculdades Integradas de Patos (FIP).
A conferência do magistrado ocorreu a partir das 19h45 desta sexta-feira, 22 de fevereiro, no amplo Ginásio de Desportos das próprias Faculdades.
Como demonstram as fotos divulgadas nesta página, a aula magna lida pelo magistrado foi prestigiada por numeroso e seleto público, particularmente os acadêmicos do curso de graduação em Direito da FIP, entidade promotora do evento.
NÚCLEO & REVISTA
A solenidade em que ocorreu o pronunciamento do desembargador Joás Filho viu-se marcada, ainda, pelos seguintes eventos:
1) Instalação do Núcleo de Atividade Jurídica/Prática Forense da entidade; o desembargador Joás foi convidado, pelos dirigentes das Faculdades Integradas de Patos, a descerrar a placa alusiva a essa instalação; o Núcleo terá, a um só tempo, duas funções relevantes, quais sejam: prestar assistência jurídica (via advogados, professores e alunos) a pessoas comprovadamente necessitadas, isto é, que não têm condições de arcar com as despesas decorrentes da contratação de um advogado; outra finalidade, esta de ordem acadêmica, contempla a supervisão, a ser feita pelo Núcleo, da prática forense dos alunos;
2) Lançamento do terceiro número da revista jurídica "Verba Volant, Scripta Manent", que engloba o melhor da produção científica dos professores e alunos da instituição, sob o comando do editor-chefe da publicação, o professor José Carlos de Medeiros Nóbrega.
COORDENADOR DA GRADUAÇÃO
A abertura dos trabalhos ficou a cargo do professor Edvaldo Luna Ramos, coordenador do curso de graduação em Direito, que fez a apresentação do desembargador Joás de Brito Pereira Filho como orador da noite e falou também sobre os objetivos do encontro.
O desembargador Joás Filho falou sobre ¿O Tribunal de Justiça e sua Função Social: Igualdade, Acesso à Justiça e Justiça Distributiva¿.
EXPRESSÃO DA DEMOCRACIA
No intróito de sua conferência, o desembargador Joás abordou, em resumo, a história da instalação inicial do Superior Tribunal de Justiça do Estado do Parahyba do Norte (hoje Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba).
Depois, num pronunciamento de cerca de 50 minutos, discorreu sobre o tema central de sua conferência, tendo como tônica a importância de um Judiciário forte e altivo como expressão da democracia.
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ÍNTEGRA DA AULA INAUGURAL PROFERIDA PELO DESEMBARGADOR JOÁS FILHO NAS FACULDADES INTEGRADAS DE PATOS
Palestra proferida pelo Desembargador Joás de Brito Pereira Filho, como Aula Inaugural do primeiro semestre do ano letivo de 2008 do Curso de Graduação em Direito das Faculdades Integradas de Patos (FIP)
Tema: ¿O Tribunal de Justiça e sua função social: Igualdade, Acesso à Justiça e Justiça Distributiva.
Sintético intróito acerca das
atribuições dos órgãos judiciários
Em geral, os órgãos judiciários brasileiros exercem dois papéis. O primeiro, do ponto de vista histórico, é a função jurisdicional, também chamada jurisdição. Trata-se da obrigação e da prerrogativa de compor os conflitos de interesses em cada caso concreto, através de um processo judicial, com a aplicação de normas gerais e abstratas.
O segundo papel é o controle de constitucionalidade. Tendo em vista que as normas jurídicas só são válidas se se conformarem à Constituição Federal, a ordem jurídica brasileira estabeleceu um método para evitar que atos legislativos e administrativos contrariem regras ou princípios constitucionais.
A Constituição Federal adota, para o controle da constitucionalidade, um sistema difuso (todos os órgãos do Poder Judiciário podem exercê-lo e suas decisões a esse respeito são válidas apenas para o caso concreto que apreciam), embora reconheça um sistema concentrado em alguns casos (os ocupantes de certos cargos públicos detêm a prerrogativa de argüir a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual, perante o Supremo Tribunal Federal, por meio de ação direta de inconstitucionalidade; nesse caso, a decisão favorável ataca a lei ou ato normativo em tese).
JUSTIÇA ESTADUAL
A Constituição Federal determina que os Estados-membros organizem a sua Justiça Estadual, observando os princípios constitucionais federais. Como regra geral, a Justiça Estadual compõe-se de duas instâncias, o Tribunal de Justiça (TJ) e os Juízes Estaduais.
Os Tribunais de Justiça dos Estados possuem competências definidas na Constituição Federal, nas respectivas Constituições estaduais, bem como em suas Leis de Organização Judiciária. Basicamente, o TJ tem a competência de, em segundo grau, revisar as decisões dos juízes e, em primeiro grau, determinadas ações em face de determinadas pessoas.
A Constituição Federal determina que os Estados instituam a representação de inconstitucionalidade de leis e atos normativos estaduais ou municipais frente à Constituição Estadual (art. 125, § 2º.), geralmente apreciada pelo TJ. É facultado aos estados criar a justiça militar estadual, com competência sobre a polícia militar estadual.
Os integrantes dos TJs são chamados Desembargadores. Os Juízes Estaduais são os chamados Juízes de Direito.
IGUALDADE E ACESSO À JUSTIÇA
Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil:
Art. 5.º - ¿Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes¿:
I ¿ Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. ¿
Sabemos que a igualdade jurídica assegurada pela Lei Maior não corresponde, como se aspira, à igualdade real, cuja verdadeira expressão seria, em sua concretude, a justiça, com pleno gozo e exercício dos direitos garantidos pela Constituição e pelos tratados internacionais vigentes, sobre direitos humanos que, por seu turno, não se limitam aos direitos civis e políticos.
Um Estado não pode se dizer democrático, como preleciona Bobbio, simplesmente por assegurar aos seus cidadãos o direito de votar e de ser votado. A democracia realiza-se com a superação das desigualdades, inclusive com as devidas e necessárias reparações aos grupos discriminados (especialmente mulheres e negros), sendo as ações afirmativas ou ações positivas um dos meios compensatórios alvitrados.
Já sob outro aspecto, os índices de desenvolvimento humano, especificamente no Brasil (como de resto no exterior) apontam para a existência de forte concentração de renda, demonstrando o empobrecimento crescente e a exclusão social de grossas camadas das populações envolvidas.
A análise da realidade brasileira, da latino-americana em particular e dos países pobres em geral, simplesmente comprova que os direitos econômicos e sociais enfrentam obstáculos quase que intransponíveis, com alto nível do desemprego, enquanto o poder econômico, que dita as regras, bate-se pela ¿desregulamentação¿ e ¿flexibilização¿ das relações trabalhistas propugnando o fim dos sindicatos e dos direitos sociais, pela criação de ¿aposentadorias privatizadas¿.
Digo, por convicção, que o direito não é neutro, que nasce dos embates sociais e de propósitos conflitantes.
O acesso à justiça constitui-se em um direito fundamental do homem, pois, em síntese, visa à garantia da liberdade, como predicado de todo ser humano.
Por ele também se assegura a efetividade dos demais direitos. Toda a atividade jurisdicional do Estado encontra-se permeada pelo princípio.
Sua finalidade, pois, refere-se aos indivíduos e ao próprio Poder. Aos indivíduos, com o sentido de lhes proporcionar um bem imanente à sua condição humana; e ao Poder, porque estabelece método de pacificação social, ou seja, de solução dos conflitos sociais.
O acesso à justiça possui, então, uma dupla dimensão: constitui um direito fundamental do homem e, ao mesmo tempo, uma garantia à realização efetiva dos demais direitos. Como direito-garantia, seu fim último será sempre o de realização da justiça e, por isso mesmo, informado pelo princípio da igualdade.
Entretanto, para que o acesso seja efetivo, concreto, não é suficiente expandir todos seus postulados no ordenamento jurídico.
Ao contrário, é mister que se traduza em uma resposta concreta do Estado, tornando-o real e não aparente ou ilusório como hoje ocorre na grande maioria dos casos, em que esse acesso está limitado ao ingresso em Juízo. É esse aspecto ¿ realização concreta da garantia ¿ quem difere as oportunidades de efetivo acesso nos diversos momentos históricos e ordenamentos jurídicos.
Parece claro que embora os ordenamentos jurídicos possam conter previsões formais ¿ como a Constituição Brasileira ¿ o acesso efetivo à justiça nesses ordenamentos pode ser e quase sempre o é inibido por obstáculos no momento de sua conversão prática, especialmente aqueles de ordem cultural, que quase sempre impedem a identificação do próprio direito, e econômicos que inviabilizam o acesso material.
Por isso, é indispensável que se alarguem as oportunidades de educação, de emprego, de saúde, em fim, de acesso aos bens materiais com uma justa distribuição da renda nacional de forma a permitir que todos tenham oportunidade de uma vida digna, inclusive para que possam reivindicar e receber dos órgãos encarregados da distribuição de justiça, em tempo oportuno, a prestação jurisdicional que lhes é garantida pelo Texto Maior.
Só assim poderá o Brasil se proclamar, no plano prático, um autêntico e verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Do mesmo pensar, Cármem Lúcia Antunes Rocha que, ao discorrer sobre o ¿O Direito Constitucional à Jurisdição¿, averba que:
¿O direito à jurisdição é a primeira das garantias constitucionais dos direitos fundamentais, como anteriormente frisado. Jurisdição é direito-garantia sem o qual nenhum dos direitos, reconhecidos e declarados ou constituídos pela Lei Magna ou outro documento legal, tem exercício assegurado e lesão ou ameaça desfeita eficazmente. Primeiramente, o direito à jurisdição é a garantia fundamental das liberdades constitucionais. Sem o controle jurisdicional, todos os agravos às liberdades permanecem no limbo político e jurídico das impunidades. Todas as manifestações da liberdade, todas as formas de seu exercício asseguradas de nada valem sem o respectivo controle jurisdicional. A liberdade sem a garantia do pleno exercício do direito à jurisdição é falaciosa, não beneficia o indivíduo, pois não passa de ilusão de direito, o que sempre gera o acomodamento estéril e a desesperança na resistência justa e necessária. Não é por acaso que os regimes políticos antidemocráticos iniciam suas artes e manhas políticas pela subtração ou pelo tolhimento do direito à jurisdição. É que sem este direito plenamente assegurado e exercitável o espaço para as estripulias dos ditadores é mais vasto e o descontrole de seus comportamentos confere-lhes a segurança de que eles se vêem necessitados de continuar no poder. O direito à jurisdição, ao garantir todo os direitos, especialmente aqueles considerados fundamentais, confere segurança jurídica mais eficaz ao indivíduo e ao cidadão, gerando, paralelamente, a permanente preocupação dos eventuais titulares dos cargos públicos com a sociedade e com os limites legais a que se encontram sujeitos. Entretanto, qualquer que seja o regime político, reconhece-se, atualmente, que a jurisdição compõe o rol dos direitos políticos fundamentais do cidadão. Por isso mesmo, o direito à jurisdição vem elencado, não poucas vezes, entre aqueles que a Lei Magna reconhece e assegura¿. (TEIXEIRA, Sálvio Figueiredo (Coord.). As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 42-43.)
JUSTIÇA & SOLIDARIEDADE
Esta parte trata da Justiça e da Solidariedade como valores fundamentais que devem respaldar a ética do novo milênio, tendo como pano de fundo o Poder Judiciário e sua função social.
Ao Poder Judiciário, enquanto órgão encarregado da distribuição da justiça, não caberá a responsabilidade pela definição dos rumos da economia brasileira, nem das políticas públicas que de um modo geral o Estado possa adotar com repercussão na vida de milhões de pessoas alijadas do processo produtivo nas cidades e nos campos, desprovidas das mais elementares necessidades: alimentação, habitação, saúde, educação e segurança.
Todavia, ao Poder Judiciário, a quem não compete planejar a economia, cabe a tarefa mais alta e mais relevante do Estado de Direito que é o de garantidor das liberdades democráticas, do respeito à dignidade humana e aos valores erigidos em ¿direitos fundamentais¿, insculpidos na Carta Magna da República e principalmente, a de assegurar o acesso dos excluídos sociais à justiça e de realizar a Justiça distributiva no âmbito do próprio Poder, na medida de sua competência: como exemplo pode-se elencar:
a) as importantes decisões dos juízes de direito, com efeito ¿erga omnes¿ e aquelas que, por seu significado e alcance social, representam um avanço democrático e contribuem para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas, as quais vejo como melhor forma de construção da cidadania;
b) A implementação de uma jurisprudência da igualdade, sob enfoque dos direitos humanos; hodiernamente o juiz é fiel guardião das liberdades e supremacias das cartas fundamentais e dos direitos individuais e sociais. Por outro lado, existe, por parte da população, forte demanda da realização de seus direitos fundamentais assegurados na Carta Política da Nação. Simultaneamente, no continente americano, o discurso oficial é de apoio aos direitos humanos; todas as Constituições na América Latina dão proteção aos direitos humanos, como direitos fundamentais, dando-lhe hierarquia supraconstitucional, constitucional ou infraconstitucional, consoante opção do legislador, apesar dos percalços políticos nas combalidas democracias do hemisfério sul;
c) Juizados Especiais Cíveis e Criminais: a CRFB, em seu art. 98, I, dispõe sobre a criação de juizados especiais competentes para a conciliação, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante o procedimento oral e sumaríssimo. A justiça ágil, rápida e informal ao alcance da população é objetivo a ser alcançado por meio dos Juizados Especiais, os quais, além de se destinarem a garantir o acesso à justiça, como pondera Kazuo Watanabe, um dos seus principais precursores e defensores, contribuem para a paz e a harmonia sociais, sendo fator de descompressão por eliminar a litigiosidade contida; e
d) A Defensoria pública: a Lei Maior determina, no inciso LXXIV do art. 5º., que: ¿O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos¿; referida assistência cumpre-se pela participação do advogado e especialmente do defensor público, nos moldes do art. 134, que diz: ¿A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º LXXIV.¿ Sob outro enfoque, a Constituição da República reforça a efetividade dessa garantia no inciso LXXVII do art. 5.º, ao dispor: ¿são gratuitas as ações de ¿habeas corpus¿ e ¿habeas data¿, e na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania¿; por outro lado, o caráter institucional da Defensoria Pública está expresso no art. 134 da Carta Política da Nação que dispõe: ¿A defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus dos necessitados, na forma do art. 5.º, LXXIV¿.
Daí ter o parágrafo único do mencionado artigo disposto: ¿Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes, a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais¿.
Uma reflexão sobre os mencionados dispositivos constitucionais leva-nos à inarredável conclusão quanto à relevância do defensor público na efetivação do princípio da igualdade, a partir da missão que lhe cabe de garantir aos despossuídos de bens e de meios materiais assistência e orientação jurídica em todas as áreas do direito, além de fazer a defesa dos réus pobres em todas as instâncias do Poder Judiciário.
Sem embargo, existe dificuldade e timidez dos operadores jurídicos em invocar as normas de proteção internacional, sendo escassa a utilização dos acordos e convenções internacionais, nas decisões proferidas quer nas instâncias originárias, quer nas superiores.
De toda a procedência, pois, a afirmação de Cristina Camiña, juíza da Corte de Buenos Aires e professora da Faculdade de Direito daquela Capital, ao asseverar a necessidade de juízes independentes de toda influencia externa, até mesmo de seus superiores hierárquicos; de uma magistratura valente que assuma os riscos de suas decisões, protegendo os direitos humanos que os instrumentos internacionais consagram.
Os Estados Partes aceitaram essa nova situação que não pode se resumir a meros enunciados abstratos, mas, na tutela efetiva dos direitos humanos e das liberdades. Nesse sentido são eles responsáveis por toda a violação a direitos internacionalmente reconhecidos.
No Brasil, marco histórico dessa interação e conjugação do direito internacional e do direito interno é a Carta Política de 1988. Pode-se dizer que uma nova ordem jurídica se instaurou, com ampla e universal proteção dos direitos humanos, cabendo aos operadores jurídicos implementá-la. Aos juízes, promotores de justiça, defensores públicos, advogados e demais agentes jurídicos cabe o desafio de utilizarem os instrumentos de proteção de direitos humanos incorporados à Constituição, a partir do novo paradigma.
O PAPEL DO MAGISTRADO
Vejamos agora o juiz, a norma jurídica e o papel do magistrado na implementação do princípio da igualdade.
No Estado moderno, o Poder Judiciário exerce relevante função social, tendo o juiz a grave incumbência de respaldar todo um sistema de garantias, existentes nas Leis, na Constituição e nos Tratados Internacionais ratificados pelo país e por isso mesmo incorporados ao rol não taxativo dos direitos fundamentais elencados no art. 5. º da Carta Magna (§2. º do art. 5. º da CRFB).
O papel do juiz, dada a magnitude dessa tarefa, não pode reduzi-lo a mero repetidor da lei ou da fórmula legal. Interpretar a lei pressupõe o trabalho valorativo, o esgotamento de instâncias prévias de valoração, escolha e decisão. Sob tal enfoque o juiz, na concepção moderna é um verdadeiro criador ou recriador de normas. E, nessa tarefa, o julgador não está sozinho, uma vez que age por provocação das partes: Promotor, Advogado e, especialmente do Defensor Público.
O consagrado e emérito jusfilósofo Miguel Reale, na sua teoria tridimensional do direito, com profundidade e clareza, expõe o fenômeno jurídico como fato, valor e norma, demonstrando que a regra jurídica não pode ser entendida sem a conexão necessária com as circunstâncias de fato e as exigências axiológicas.
Dessa complexa condicionalidade, explica, a norma adquire significados diversos com o passar dos anos. Daí a especial relevância da jurisprudência.
Hoje é comum falar-se em cidadania, sem antes refletir sobre o real sentido da palavra. Muito além do exercício pleno dos direitos políticos, cidadania consiste na faculdade de ver assegurado pelo Estado o cumprimento da tarefa igualitária e distributivista, sem a qual não há democracia nem liberdade.
Lamentavelmente, o que presenciamos é uma distância abissal entre a justiça distributiva (e igualitária) e a população pobre. O desrespeito aos direitos fundamentais é tamanho que levou o Professor Fábio Konder Comparato a afirmar:
"Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção ¿e¿ significa ¿ou¿, se o ¿caput¿ de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário. (...) Ela (a Constituição) continua a existir materialmente, seus exemplares podem ser adquiridos nas livrarias (na seção de obras de ficção, naturalmente), suas disposições são invocadas pelos profissionais do Direito no característico estilo ¿boca de foro¿. Mas é um corpo sem alma."
Partindo da máxima aristotélica segundo a qual as pessoas em situação desigual devem ser tratadas desigualmente, na medida de sua desigualdade, a Constituição da República de 1988 trouxe o seguinte comando, abrindo o capítulo referente aos direitos e garantias fundamentais:
"todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade."
Trata-se da cristalização do princípio da igualdade real, para alguns isonomia material ou ainda igualdade na lei.
Paulo Bonavides preleciona que "a importância funcional dos direitos sociais básicos, assinalada já por inumeráveis juristas do Estado social, consiste pois em realizar a igualdade na Sociedade; ¿igualdade niveladora¿, volvida para situações humanas concretas, operada na esfera fática propriamente dita e não em regiões abstratas ou formais de Direito."
Mas, afinal, o que significa, no Brasil de hoje, igualdade real entre os indivíduos?
Preferimos a definição do Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Marcelo Galuppo, segundo o qual o princípio da igualdade pode ser entendido "como um princípio que permite a maior inclusão possível dos cidadãos nos procedimentos públicos de justificação e aplicação das normas jurídicas e de gozo dos bens e políticas públicas, que pode ser fundamentado na dimensão lingüística do direito e que desempenha a função básica de permitir a sobrevivência democrática de uma sociedade pluralista."
Em outras palavras, há situação de igualdade quando as pessoas estão inseridas num quadro de distribuição de justiça pelo poder público, de forma que possam efetivamente influenciar as decisões políticas e gozar das prerrogativas descritas na lei.
Hoje a lógica é a seguinte: quem pode pagar imposto de renda paga. Quem não pode está isento. Quem é deficiente físico tem (ou deveria ter) facilidade no acesso aos prédios públicos e aos meios de transporte. Quem não pode pagar um advogado, tem direito à assistência jurídica da Defensoria Pública. E assim por diante.
Logo, sob o paradigma do Estado Social garantidor do bem estar da coletividade (Welfare State), fez-se necessária a intervenção do Poder Público no sentido de outorgar à pessoa pobre a possibilidade de acesso à denominada ordem jurídica justa (isso envolve naturalmente o reconhecimento de que a pessoa carente, via de regra, é hipossuficiente técnica, jurídica e economicamente em relação a certos atores sociais, como as instituições financeiras).
Deu-se origem, então, à "igualdade niveladora" que passou a ser denominada pela doutrina como igualdade material, real ou substancial (em contraposição à igualdade perante a lei, o que corresponde a um tratamento análogo de todos, desprezando suas diferenças).
Traçada essa definição inicial, surge outra questão: a quem se dirige o comando constitucional da garantia de igualdade (referente, no caso, à instrumentalização do acesso à justiça da pessoa carente)?
Não há dúvidas de que o ônus recai incondicionalmente sobre todas as manifestações do Poder Público (diga-se: Poder Legislativo, Executivo e Judiciário).
O primeiro cuida da elaboração normativa, fixando diretrizes a serem cumpridas pelo administrador. O segundo, gestor do interesse coletivo, desenvolve políticas públicas para tornar efetivo o preceito constitucional. Por fim, o terceiro, a princípio inerte, é acionado quando o Executivo ou o Legislativo inviabilizam o exercício de alguma prerrogativa constitucional.
Curial trazer à baila a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da questão:
"O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é - enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica - suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio - cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público - deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata - constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade."
Os exemplos são pontuais. Retratam com precisão o devaneio de igualdade entre as pessoas, cultivado por muitos. Noutro passo, evidenciam alarmante paradoxo da sociedade brasileira. Explicamos: nunca o Congresso editou número tão expressivo de leis protetivas das minorias. Temos o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, Lei Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, lei que assegura prerrogativas aos deficientes físicos, dentre outras. Não obstante, ainda somos obrigados a presenciar flagrantes ilegalidades cometidas contra essas mesmas minorias que o Estado busca proteger.
Ora, se não faltaram leis, o que deu errado? Será a chamada anomia, ou seja, a inflação legislativa que conduz à inutilidade do ordenamento jurídico? Ou será a falta de uma estrutura administrativa que assegure a fiel observância da Constituição por parte dos membros dos Poderes Constituídos? Teria o apetite eleitoreiro falado mais alto e conduzido à apresentação de projetos de lei para inglês ver? Não descartamos nenhuma hipótese.
Assiste razão a Celso Antônio Bandeira de Mello quando diz que "Uma norma ou um princípio jurídico podem ser afrontados tanto à força aberta como à capucha. No primeiro caso expõe-se ousadamente à repulsa; no segundo, por ser mais sutil, não é menos censurável¿.
A realidade nos leva a crer que a exclusão social (não só dos pobres) no Brasil se dá por meio insidioso. Ou seja, formalmente existe um intrincado aparato estatal de proteção das minorias que, na prática, revela-se um modelo deficiente de distribuição de justiça. E a culpa é de quem? Citemos Daniel Sarmento que, com grande sensibilidade, observou que "os desníveis sociais existentes no Brasil têm uma dimensão verdadeiramente ¿pornográfica¿." Será a Constituição um corpo sem alma?
Encerramos lembrando as palavras do escritor mineiro Bartolomeu Campos Queiroz, que disse certa vez: "Cheguei à conclusão, em dois anos de convivência com os moradores de rua, de que a miséria leva à loucura."
A penúria arrasa o ser humano. Elimina sua personalidade. É preciso que o Estado Brasileiro se conscientize desse fato e entenda que Judiciário forte é sinônimo de democracia, cidadania e liberdade. O contrário é Constituição sem alma, leis de todos os tipos, tão só no plano do ideal.
Muito Obrigado.



