Audiências concentradas buscam reintegrar crianças em situação de acolhimento as suas famílias
No mês em que se comemora o Dia das Crianças, muitas delas serão presenteadas com bonecos, carrinhos, jogos, viagens. Outras, no entanto, estão sonhando com algo mais abstrato: amor e o direito a um lar. É o caso das que se encontram em situação de acolhimento institucional na Capital paraibana. Neste outubro, a situação de cada uma delas começou a ser reavaliada por meio de mais um ciclo de audiências concentradas – sistemática que consiste em verificar a possibilidade de reintegração familiar, encaminhamento para adoção ou manutenção do acolhimento.
Realizadas a cada seis meses, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as audiências concentradas ocorrem na própria unidade de acolhimento. A primeira rodada ocorreu na Morada do Betinho (Bancários), ocasião em que seis acolhidos tiveram suas situações reexaminadas. No entanto, não houve casos de reintegração familiar. De acordo com o coordenador de Infância e Juventude da Capital, juiz Adhailton Lacet Porto, as crianças ouvidas continuarão acolhidas.
“O trabalho continua no esforço de viabilizarmos uma aproximação entre elas e suas famílias. O principal trabalho de todos que compõem a rede de proteção à infância e juventude, nesses casos, é o fortalecimento do vínculo familiar”, afirmou.
Para o trabalho, há a atuação de uma equipe multidisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, conselheiros tutelares, que vão promovendo a reaproximação da criança com a família de origem ou extensa (tios, avós, entre outros), buscando solucionar os problemas que ocasionaram o afastamento das crianças dos seus responsáveis (como uso de drogas, violência, negligência), a fim de que seja possível uma reintegração satisfatória.
Os braços do acolhimento institucional
Negligência familiar, abandono, dependência química dos pais ou mesmo a condição de órfãos são os principais motivos que levaram os seis acolhidos à Morada do Betinho, em sua maioria, adolescentes. A informação é da psicóloga da instituição, Kássia Kiss Granjeiro Belém.
O primeiro passo tomado pela coordenação da casa foi a reinserção escolar, visto que geralmente eles estão, há algum tempo, afastados da escola. “Também os inserimos em atividades esportivas e cursos. Atualmente, os nossos acolhidos estão se dedicando ao atletismo e ao futebol”, revela a psicóloga.
Kássia sabe que não é o bastante. É preciso que os braços sejam mais longos e envolvam de afeto aqueles que chegam à unidade com rebeldias e dificuldades de adaptação. O trabalho é contínuo e diário, mas em pouco tempo, resultados positivos aparecem, como enfatiza a psicóloga.
“Eles chegam carentes de carinho, cuidado e atenção. Chegam 'adultizados' e nós procuramos recuperar valores da infância, como a necessidade de brincar. Trabalhamos com a criação de uma rotina, com obrigações, responsabilidades. Eles devem arrumar a cama, respeitar horários, ir à escola. Almoçamos juntos e sempre enfatizamos a necessidade destas responsabilidades. Aqui é o lar temporário deles”, explica.
A promotora da Infância e Juventude da Capital, Soraya Escorel, destaca que as casas de acolhimento contam com o engajamento e a boa vontade das pessoas que nela atuam. “É um trabalho importante, com compromisso. Mas o ideal é que eles possam retornar à família, e as audiências concentradas representam esta esperança”, diz.
O juiz Adhailton Lacet observa ainda que a própria estrutura das casas de acolhimento evidencia uma evolução na forma de lidar com os jovens. “Antes, existia um modelo de internação. Hoje, temos casas normais, sem placas e cercas elétricas. Eles podem entrar e sair livremente, com exceção das crianças, que precisam estar acompanhadas. Têm Internet, recreação. Estudam, passeiam, vão à praia no fim de semana. Recebem voluntários que trabalham com eles. Há um arcabouço para que tenham o desenvolvimento que deveriam ter junto à família”, observa o magistrado.
As parcerias
Os trabalhos em torno da Infância e Juventude são articulados em rede, com a participação de muitos órgãos e entes da sociedade. A Universidade Federal da Paraíba é um dos parceiros na causa, por meio do programa de extensão “Escolarização que promove a superação de adolescentes em casas de acolhimento”, que conta com alunos dos cursos de Pedagogia, Psicopedagogia e Letras.
A iniciativa surgiu diante da distorção existente entre série e idade, em que muitos acolhidos se encontram, quando do retorno à sala de aula. Além da dificuldade de adaptação escolar e de acompanhamento do conteúdo, como explica o voluntário do programa Felipe Ferreira, aluno do curso de Pedagogia da UFPB.
“Não se trata de um reforço escolar. Atuamos no sentido de fazer com que eles consigam uma identificação com a escola. Trabalhamos com o reconhecimento de um sentido de vida para eles, porque muitos estão desestimulados. Procuramos ajudá-los a busca algo na vida, através dos estudos”, afirma.
O projeto ainda está no primeiro ano, mas os resultados são visíveis, ainda que sutis, e são mapeados através de pequenas mudanças de comportamento em sala de aula, ou mesmo na casa de acolhida. Os menores sinais de envolvimento com as atividades escolares já são comemorados.
A espera e a esperança
O amparo possível experimentado pelos adolescentes na Morada do Betinho não os faz esquecer a própria família ou o sonho de voltarem a viver em uma.
Os sentimentos parecem confusos. M.L, 14 anos, revela que costumava fugir da casa da avó, com quem morava. Diz gostar da vida na casa da acolhida, embora também já tenha fugido da instituição algumas vezes. “Para andar por aí, apenas. Mas gosto de todos daqui”. Agora, tenta obedecer às regras locais. “Aqui é bom, mas tem que obedecer, né? Tem horário, tem que estudar. Quero ser bombeiro”. Mas quando a pergunta é 'uma saudade', a reposta vem sem titubear: “minha avó”.
R. tem 11 anos. Antes de chegar à Casa, estava em situação de rua, na comunidade em que vivia com a família. Conta que chegou a roubar, mas “apenas para comer”. O garoto, que brinca, ri, pula e fala ao mesmo tempo, se mostra entusiasmado por estar aprendendo a ler e escrever. Há três anos, não frequentava a escola. Mas o desejo de voltar à família logo aparece, no meio da conversa. “Queria morar com o meu pai ou com o meu tio”. E a ansiedade, também. “Se o juiz deixar, posso voltar hoje mesmo pra casa?”.
No entanto, a reintegração ainda não foi possível, porque não foram constatados os requisitos necessários para o retorno ao lar. Ambos precisarão esperar por mais um tempo, enquanto a Justiça, o Estado, o Município e todos os envolvidos no Sistema de Garantias de Direitos às Criança e aos Adolescente tentam viabilizar o retorno à família. Ou alguma família. Mas sempre há esperança.
Gabriela Parente